terça-feira, 29 de setembro de 2009

TERROR E ÊXTASE

Os 1001, os Tatuzinhos,
os Boca Torta, os Minhoquinhas estão aí.



Existem livros que ficam marcados em sua memória.
Terror e Êxtase de José Carlos Oliveira é certamente um deles.
O li pela primeira vez no final dos anos 70 e creio que o reli em três ou quatro oportunidades.
Guardei em minha mente algumas de suas passagens e seus inesquecíveis personagens, 1001, Tatuzinho, Boca Torta e Heleninha a riquinha de Ipanema, que se entrega ao marginal da favela.

Foi uma forma distinta que o grande cronista do dia a dia (ou melhor da noite a noite) encontrou de revelar-se também como um grande escritor, na tessitura de uma surpreendente partitura. Como diria alguém, uma samba-enredo escrito por Hitchcock e filmado por Fellini.

Tudo uma questão de uma época. Tudo um clarão de sensibilidade daquele que é capaz de captar o momento e consegue transmitir no papel, em todos os seus detalhes.

As épocas são distintas. Se modificam com as gerações e os costumes. E com ela a literatura. Gosto de ler textos antigos não só de autores internacionais, como mesmo os nacionais e vejo quão distintas são as formas de se tratar um mesmo assunto. Descrições que parecem de outro mundo, o que determina que a sensibilidade de ver e transmitir igualmente se modifica nos seres humanos.

Vou repassar aqui alguns textos descritivos para que se possa avaliar as diferenças de uma época. Afinal descrever uma pessoa, é descrever uma pessoa. Mas como vê-la e senti-la depende de quem assim o faz e da época em que vive.

Vamos retroagir no tempo. Digamos 1916. No prefácio do Livro do Amor de Nilo Bruzzi, Valfredo Martins assim descreve o autor:

“Era um menino. Tinha a beleza das mulheres e a volúpia dos homens. Seus cabelos esvoaçantes dir-se-iam alvoroçados por caricias femininas. Nos olhos tinha o brilho inquieto das vitrinas de joalherias. Na olheiras, o violáceo dos crepúsculos e nas faces duas rosas encarnadas. Sua boca era uma papoula enfarfalhada. Depois, este Dorian Gray de Oscar Wilde surgia no luxo imprevisto das suas cigarreiras, tauxiadas de madrepérolas , dos seus anéis egípcios de lápis-lázuli, das suas cadeias de platina e ouro, das suas camisas rajadas e bizarras abrochando-lhe a gravata um esmalte veneziano, onde sonhava a figura de um pierrô melancólico...”

Bizzaro digo eu! Muito estranho, mas talvez fosse a época e os costumes, que assim o exigiam. Vamos dar um salto no tempo. Vejam a forma de José Carlos Oliveira descreve uma situação 60 anos depois:

"... Ali me tornei mocinha... janeleira, eu, tinha um namorado chamado Alcebíades, imaginem... ‘Nossa filhinha se chamará Alcelina’, prometia ele, ‘Alcelina - Alce/bíades e Ade/lina’… Pobre vingança... Pobre Alcebíades, ele não entendeu quão era fundo o meu amor, e que jóia tão sem valor a pequenina membrana que separa a mocinha da mulher... Levou a jóia. Arrancada brutalmente de minha carne, eu esmagada entre o seu corpo e o portão, ele sussurrando obscenidades na minha orelha, e nunca mais... Nunca mais Alcibíades, nunca mais Alcelina arrancada três meses depois por uma abortadeira sanguinária do Estácio... Nem mais a casa azul da Vila Feliz, derrubada a marreta e em seu lugar erguido o edifício Vila Feliz, 10 andares, 8 apartamentos por andar. Roubaram até o nome da minha infância, imaginem: Vila Feliz...Mas eu me vingo na repartição. E algo superior às minhas forças. Quanto mais humilde o requerente, mais o maltrato. Depois me envergonho de mim mesma, de minha impiedade. Mas que diabo, Deus também não faz aqui conosco?...”

Terror e Êxtase é uma aula de vivência. Um esboço traçado a um paralelo de um mundo que existe, mas que nós procuramos evitar, embora ele esteja a nossa frente e seja comentado todos os dias pela mídia.

Escrito no final dos anos 70, quando a violência no Rio de Janeiro era ainda tolerável, se é que qualquer tipo de violência possa ser tolerada, Terror e Êxtase foi qual uma profecia em que o Rio de Janeiro iria se tornar. Livro para se ler de um gole.

Passados 40 anos, o que estava escrito naquelas poucas 160 páginas de ficção tornaram-se o palco de uma cena do cotidiano carioca. Muitos se sentem polichinelos no picadeiro da vida, onde o minuto seguinte pode se tornar o final. Depende da hora e do lugar em que você se encontre.

Este é o lado do Rio de Janeiro que não posso aceitar. O lado da violência, da impunidade, do abandono e de marginais soltos no fim de semana para fazerem aquilo que sempre fizeram e inicialmente os levaram para atrás das grades.

Os 1001, os Tatuzinhos, os Boca Torta, os Minhoquinhas estão aí. As Heleninhas também e nada parece estar sendo feito para conter esta escalada que cada dia se torna maior e mais freqüente.