domingo, 20 de setembro de 2009

O ESTILO MINEIRO E MATREIRO

O ESTILO MINEIRO E MATREIRO


 

Poucos, mais poucos escritores mesmo, 
tinham a rara capacidade de em qualquer situação 
- fosse em um conto, em um romance ou mesmo em um crônica de jornal – 
apresentar um texto tão conciso, 
carregado de tanto significado, com frases curtas e exatas, 
como Otto Lara Resende o tinha.

Pena que deixou pouquíssimos contos e romances. Consegui cinco publicações por ele assinadas: As Pompas do Mundo, A Boca do Inferno, Bom dia para Nascer, O Braço Direito e A Testemunha Silenciosa. Não devem ter muitas outras por ai. Pouco para o peso de sua palavra e para a lisura de sua pena.

Seu estilo era mineiro, matreiro e poético. Ele tinha a capacidade de captar e exprimir em palavras, as situações em seus mínimos detalhes. Próprio de um perfeccionista, que nunca está satisfeito mesmo quando atinge aquilo que todos consideram como seu ponto máximo. Palavra por palavra, virgula por virgula. Parágrafo por parágrafo, não há perda alguma de espaço com qualquer tipo de preenchimento de lingüiça.

Apresento a seguir, um trecho de a Testemunha Silenciosa, uma das poucas obras de romance publicadas por Otto Lara Resende. Não sou critico literário, apenas um leitor apaixonado. Mas considero este trecho como um dos mais líricos, pois, impele a uma quase perfeita descrição de alguém que pela primeira vez toma conhecimento do nascimento de um novo dia. A meu ver nenhum detalhe foi perdido. Nada pode ser considerado supérfluo. Quantos nascer do dia você já presenciou? Vamos ao trecho:

“... à noite, eu rolava na cama, encolhia as pernas e os braços. Me encolhia inteiro, queria sumir. Via seus olhos a me olhar, sua mão a me acenar. Sentia no meu rosto de menino os seus lábios de mulher. Afinal dormi e acordei pela madrugada. Na sala o tique-taque do relógio me repetia o nome de Rita Maria. Sai da cama e abri a janela da rua. Suspendi a vidraça devagarinho para não fazer barulho. O ar frio da madrugada me bateu no rosto. Os postes suspendiam lâmpadas de uma luz cansada. O silêncio guardava com usura um resto de sono das famílias. Nada, nem morte de velho, nem doença de criança, nada perturbava a paz da madrugada. Os galos começaram a cantar. Próximos e distantes, convocaram outros galos e teciam a manhã por cima do mofo dos telhados. Mais um pouco e a cidade começou a acordar. Beata tossindo no caminho da igreja, leiteiro, padeiro, trote de cavalo nas pedras da rua, latido de cão, passarinhada cantando invisível na sombra densa das árvores. No quarto pequenos estalidos se desprendiam dos móveis. A luz de um novo dia reinventava o catre de cabeceira alta e redescobria o Crucifixo na parede. Dois mundos se desafiavam: lá fora o sol nascia do morro e da serra. O céu se coloria enquanto os galos cantavam. Cá dentro, o quarto agasalhado, famíliar, minha primeira noite branca.


Fechei a janela e me deitei. Mais um pouco e o sol fundava o seu reinado de certezas e de coerência. Tomado por uma tontura, o quarto levantou âncoras e viajou sobre as águas tranqüilas, atrás de um simples aceno de mão. Eu via pela primeira vez o dia nascer. Mas uma sombra tinha penetrado no meu coração para nunca mais sair ”.

Homem de grande inteligência e excessiva cultura, ele foi adido cultural em Bruxelas e Lisboa, e notabilizou-se como Augusto Frederico Smith, a escrever textos e discursos para muito político e presidente de grandes organizações.

Gosto muito de suas frases. Com um mínimo de palavras um universo de informação:

Eu divagava, o espírito ausente.


Saiu e deixou um susto no ar.


As botas que iam enfrentar o desconhecido.


Nenhum companheiro estabelecia comigo sociedade duradoura ou profunda.


Arroto de grandeza com a barriga vazia.


Só jogava no dia de forte palpite, soprado no farrapo de um sonho que ele mesmo interpretava.


A cidade quieta como um gato na sesta.


Este era o perigo que trazia dentro dele, como um verme dentro de um fruto.


Na confissão, eu omitia este pecado. Seria pecado? Devia ser, porque eu omitia.


Um grilo dilata o silêncio da rua.


Balcão de venda não é confessionário. Vão tapear o vigário, que não tem o que fazer.


O bom saber é calar.


Não é com promessa no anzol que eu apanho peixe.


O mundo é um quarto úmido e escuro.


Dormir no chão para não cair da cama.


Juntando pouco é que se amealha o muito. Sem poupar no tostão ninguém chega ao milhão.

Frases que compõem esta pequena obra intitulada A Testemunha Silenciosa e outra bem regional chamada A Cilada. Frases ditas com a clarividência de quem olha, vê e sabe transmitir.
albatrozusa@yahoo.com