segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O PÉ FRIO

O PÉ FRIO



Naquele canto do aeroporto onde o sol parecia se por, 
a fila se alongava sinuosamente como uma serpentina perdida ao vento. 
Cigarras errantes estridulavam por entre as parcas flores do singelo jardim da praça, 
cujo perfume se perdia dentro do odor da proximidade de uma cidade que de tão grande, 
já estava perdendo sua cor, seu cheiro e sua personalidade. 
Parecia esmaecida ao ver de muitos. Uma beleza de verdade transitória. 
Um encanto que passou.

Aquela sexta-feira que nascera úmida e cheia de nevoa, poucos foram os vôos alçados do aeroporto de Congonhas. Veio uma ameaça de melhora por volta das dez horas da manhã, mas o sol se negou a aparecer e só agora, no final da tarde, depois de uma chuva internitente e resquícios de queda de temperatura, é que seus raios luziram em alguns pontos da cidade.

A cidade tornou-se abafada, lacônica, irrespirável. O calor voltou em hedonística repulsividade, na sua eterna tendência de metrificar as gotas de suor pelo volume carnal de cada um dos presentes. Com dilacerada ternura, pouco a pouco uma brisa avolumou-se vindo da baia de águas paradas.

O velho aeroporto que durante décadas ligou o São Paulo ao Rio de Janeiro, agora ampliado, estava superlotado com o acumulo de vôos atrasados. Uma multidão de onipotência numérica exprimia-se numa aviltante intimidade física. Da onde estava, Orozimbo ainda aproveitava para vislumbrar a tênue luz do sol que se ia vagarosamente, Deus sabe para onde, talvez despedindo-se do expediente que não dera. Que saudade de seu pé de sibipiruna...

“Não te entendo Orozimbo. Você compra um bilhete caro para burro, impossível de ganhar, tem a sorte de ser o único premiado em mais de 100,000 caras e simplesmente se nega a ir a Coréia assistir a Copa do Mundo?

Orozimbo sempre suspeitara seu amigo ser portador de um abstencionismo agnóstico. Poder-se-ía afirmar, sem resquício de dúvida que ele estava no limite mais limitrófico da área símia. Não era na realidade culpa do amigo. Nascera prematuramente incompleto. Na verdade era bem afeiçoado, simpático mas trouxera como única oferenda ao mundo, sua especialidade em idéias gerais, que infelizmente, não demonstravam destino algum por sua sólida base de falsos valores. Seus erros de julgamento eram incomensuráveis. Ser chamado de Oró igualmente não suavizava aquela ogeriza pela qual sentia pelo companheiro de trabalho. Mas Orozimbo, em seu deformador desejo subalterno de agradar a todos, não quis colocar mais lenha na fogueira.

Orozimbo tinha vergonha de seu nome. Nunca entendera porque sua mãe uma mulher piedosa mas cativa ao mal gosto, fora batizá-lo, com o nome daquele. Só podia ser coisa do miserável do seu pai. Porque não Pedro Paulo, Raul, Antonio Maria, Rubens ou Márcio? Afinal todos eram nomes que faziam parte de sua corrente de ancestrais. Por que cargas d’água sua mãe Lindalva deixara que seu pai o batizasse justamente com o do padrinho Orozimbo? Esta era a cruz que teve que carregar por toda a sua vida. Seu calvário de adolescente. Todavia, pior do que Orozimbo, era o apelido que lhe haviam sapecado; Oró.

Oró não era nome de gente. Nunca um jogador de futebol, escritor ou cantor vencera com este nome. Nem os baianos apelavam para aquela sigla. Talvez o Leal tivesse razão; Oró não era apelido era sigla! Sigla abjeta, púria de rara repugnância. Mas mesmo rebelde em seu interior, sim, era a palavra que ele mas exteriorizava.

Orozimbo era uma ilha recalcitrante, cercada de dúvidas por todos os lados. Seus complexos indefinidos. Uns diziam ser de Édipo, outros de Electra. Ele na verdade não os reconhecia. Seu pai, um canalha de carteirinha, sempre incutira nele o complexo de azarento. Outrossim, Orozimbo embora sujeito de paz, nada respondia sem muita reflexão. Tinha aquela cara capacidade de seus ancestrais mineiros de pensar antes de emitir qualquer som. Mesmo que este fosse um subilo alô. Para que encrencar com o Giuliano? Se ele queria o chamar de Oró, que o chamasse. Na realidade Orozimbo era um resignado por convicção.

“Deve ser mesmo medo de avião. Na hora H, você arrepiou”.

“Se assim o fosse, não estaria aqui e sim num carro dirigindo para Rio de Janeiro, não é Giuliano?”

Mesmo para QI limitado qual o de Giuliano, fazia senso. Embora fosse pela primeira vez que ele estivesse viajando no aviãozinho da companhia. Ele e o Oró.  Sabia que na sede, corria uma boato a boca pequena, que o Orozimbo era uma espécie de pé frio. Daqueles que afundavam qualquer coisa que tocassem...Pensou na viagem aérea que teria que fazer...Tentou ver o lado brilhante da coisa.

“Mas porque então, homem de Deus, abdicar de um sonho de todo o brasileiro?”

“Porque sou pé frio”.

Seu ênfase shakesperiano não deixou o menor resquício de dúvida. Os colegas de trabalho, talvez não houvessem exagerado. O cara não só parecia ser pé frio, como assumia a gelidez de seus membros.

Giuliano, homem criado e vivido nas ruas do centro paulistano não acreditava nestas crendices de gente antiga. Deu uma forte gargalhada, para demonstrar desprendimento. Embora por dentro, sempre assolado por aquelas mesquinhas aspirações inferiores, começou a temer em avançar naquela verdade.

“Aonde se viu um homenzarrão como você acreditar em tolice como esta? Pé frio? Premeditação ao infortúnio”.

“Fácil para quem nunca passou pelo que fui obrigado a passar”.

“Não premedite seu futuro”.

Olhando melhor para o companheiro de trabalho, Giuliano notou que na verdade tudo no Orozimbo parecia premeditado, a começar por seu próprio nome. Afinal ninguém é batizado de Orozimbo por acaso. Só uma forte desinteria intestinal ou um total desapego a criança em seus braços, poderia fazer uma mãe desnaturada escolher um nome como estes, para um pobre cristão. Afora isto, a premeditação fazia parte do dia a dia daquele homem alto, de olhos lânguidos, de constituição esquálida, capaz de se fazer passar desapercebido em qualquer ambiente que fosse obrigado a freqüentar. Sua roupa sempre bem passada, o cabelo milimétricamente repartido, a voz comedida, o cuidado no uso das palavras, o esmero na limpeza de suas unhas, os sapatos engraxados, o relógio encoberto pelo punho engomado, a gravata de apenas uma cor, a sobriedade no terno normalmente azul marinho, os óculos de aro ao estilo pince-nez, o bigode aparado, a barba sempre feita, eram sintomas de uma premeditação hereditária.

Não havia mais dúvidas na cabeça do descontraído Giuliano. Orozimbo era realmente de um premeditação invulgar. Nata. Nada nele poderia surpreender a ninguém. Ele era mais do que um livro aberto. Ele era o livro já lido.

“Mas então porque você então teve a pachorra de comprar a porra do bilhete?”

“Para testar a minha sorte”.

“Tá ai? Você ganhou. Você é um homem de sorte. Quem tem sorte não pode ser pé frio”.

Por segundos Giuliano sentiu-se confortável. Talvez não fosse tão arriscado entrar num mesmo avião com aquele cara. Olhou para a pequena aeronave e teve impetos de desistir,

“E quem não garante que seja predestinação?” a voz do companheiro o despertou do torpor.

“Predestinação Oró? Daqui a pouco você tentará me convencer tratar-se de um complô argentino para o levar o Brasil a perder a Copa”.

A concepção hegeliana de Giuliano por segundos captou a corrente imaginativa de Orozimbo. Nunca lhe passara pela cabeça aquela possibilidade. Realmente o vendedor do bilhete dizia-se espanhol, mas poderia ser um argentino disfarçado...o filho de Maradona...