quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O SUÍCIDA



O SUÍCIDA

Jeremias estava pronto para suicidar-se. 
Deixara sua casa pela manhã, como nada de anormal houvesse acontecido
e pegou o primeiro ônibus que passou a sua frente. 
Não aquele que todo o dia o levava ao trabalho.

Viu seu bairro desaparecer e a cidade se mostrar pela primeira vez em décadas, de uma outra forma. Percebeu diferenças. Gostou da mudança. Fascinou-se com as novidades. A falta de algo transcendental em sua vida como a mudança de um trajeto, fê-lo enamorar-se de sua existência por alguns segundos. Talvez viver não fosse tão mal assim. Ele é que não soubera aproveitar.

Sentiu o perfume da negra com quem dividiu o banco assim como o queixume de uma dona de casa que amargurava-se por estar de pé. Muitos tinham sempre que estar de pé. Penúria dos dependentes dos coletivos. Principalmente aqueles que pegavam a condução naquela horário. Mas a mulher parecia não conformar-se. Sina de muitos, nunca estar satisfeito com o que a vida poderia lhes reservar. Deu ombros. Sorte que aquela linha tinha inicio a duas quadras de sua casa. Sempre viajava sentado. Tinha joelhos doentes e costas cansadas.

A vida curvara-lhe. O trabalho o enfraquecera. O dia a dia esfalfara-o. Teve ímpetos de dar-lhe seu lugar, afinal era um cavalheiro. Um cavalheiro pronto a suicidar-se, mas ainda um cavalheiro. Outrossim estava cansado e preocupado com que iria fazer. Serviço de grande responsabilidade. Desistiu e fingiu não tê-la notado. Melhor assim. Precisava gozar os últimos momentos de sua existência com um mínimo de conforto. A imagem da mulher equilibrando-se aos solavancos naquelas pernas gordas e varicosas, não lhe saia da mente. Como boa alma que era, arrependeu-se e cedeu o seu lugar. Destino de eterno doador. Sofrera por várias décadas, porque não sofrer umas horas há mais. Destino do resignado.

Para não dar o braço a torcer, resolveu descer. A mulher do queixume, sorriu. Poderia agora descansar sua vasta região glútea naquele assento que lhe deixara quente. Sorriu-lhe de volta sem sequer saber porque. Talvez fosse o senso de despedida. Desceu e esperou por outro ônibus, que logo a seguir estacionou à sua frente. Não teve que lutar para chegar a seu interior. Estava mais vazio. Vinha na sombra do outro, evitando passageiros. Melhor assim. Não tinha naquela manhã a necessidade do calor humano.

Seguiu ao destino desejado, consciente que a decisão que tomara na noite anterior era a única possível. Olhou a tudo que passava pela janela do coletivo com um sentido de perda. Amanhã não mais estaria ali, mas todas aquelas coisas sem vida, sim. Incrível como os bens dentro de sua inatividade respiratória mantinham-se na terra quando seus senhores e criadores a abandonavam. Mais velhos viravam até antiguidades. Verdadeiras reliquias aos olhos dos mais novos. Enquanto as antiguidades humanas como ele próprio, transformavam-se em estorvos e só cresciam aos olhos do jovens quando desapareciam de suas existências.

Estava acostumado com o transporte coletivo. Não mais exasperava-o aquela humilhante intimidade física de corpos espremidos na luta por um mesmo lugar ou um assento a vagar-se. Não mais enojava-se com aquela mistificação de odores. Não mais surpreendia-se com o obsessivo tato e enervante aflição de sentir a presença do suor, do mofo, do tecido mal lavado. Acostumara-se a tudo e sentia-se ileso a qualquer sensação maior. Sentava, lia seu jornal e descia há três quadras de seu escritório. Andava até ele, comprimentava aquelas mesmas pessoas que a cada hora estavam mais velhas e desinteressentes, trabalhava e no final do dia, ao ônibus voltava. Tornara-se um escravo dos mesmos.

A turba que compunha uma viagem coletiva, qualquer que fosse o trajeto, era de imperceptível alienação. Não falavam, não pensavam, não interagiam. Simplesmente equilibravam-se torcendo para que os sinais se mantivessem abertos e poucos fossem os pontos a ter que parar. Desta forma ansiavam chegar o mais rápido possível a seus respectivos pontos de destino. O passageiro do ônibus era um inimigo potencial daquele que no ponto esperava subir. Descer do ônibus era um alivio. O final de um tormento. Como a libertação de uma prisão passageira e inoportuna.

Foram menos de 50 minutos desde que deixara sua casa, até chegar cerca do ponto em que poria fim a aquela sua via crucis que fora sua vida. De volta ao terreno firme esperou diligentemente para atravessar a rua. Queria suicidar-se, mas não ser suicidado por um daqueles choferes de coletivos. Foi quando viu pela segunda vez aquela borboleta de cor purpura que elegantemente singrava a atmosfera, como esta fosse de sua propriedade. Segui-a com olhos. Seria a mesma? Impossível. Do Méier ao Leblon, haja asa e fôlego! Então uma prima, talvez uma irmã? O sinal abriu, e ele atravessou.

A visão daquela borboleta fê-lo parar, sentar em um banco da praia e lembrar-se de como tudo aquilo viera a acontecer. Eram passadas menos do que 24 horas.

Vinte minutos de seu escritório ao Jockey Club. Usara um táxi, não um coletivo. Fora a primeira grande mudança de sua vida. Táxi, figura patética de exclusivo uso dos abastados. A seguir toda uma tarde mista de prazer, ansiedade e terror. De sonhos dourados a tristes realidades, num piscar de horas. E mais uma hora para chegar de volta a sua casa; o palco que escolhera para a despedida, o epílogo de sua existência. Mas era domingo e nenhum de seus filhos veio dormir em casa. Todos com seus afazeres e problemas, nem a velha empregada estava presente. Era seu dia de folga. Não tinha de quem se despedir. Pousou o que restara daquele dinheiro em sua mesinha de cabeceira, fez o sinal da cruz, rezou, desculpou-se e dormiu aquele seu último sono. O cansaço não o deixou suicidar-se.

O fato de não dar fim a sua vida em sua própria casa, acabou sendo sensato. Ansiava que seu corpo nunca viesse a ser encontrado. Com um pouco de sorte isto poderia acontecer. Afinal, gostaria que todos tivessem apenas em mente a imagem de quando vivo. Embora não fosse das melhores, o seria pelo menos em relação a de um defunto em um caixão. Nunca fora dado a enterros. Comparecera a apenas um, o de sua finada esposa. E nunca mais conseguira trazer a mente aquele seu raro sorriso, aqueles mansos olhos, aquela expressão de lucidez e bondade duradoura. Sempre lembrava dela, lívida, fria, imóvel a caminho de sua última viagem.

Olhou para o cristo. Continuava com os braços abertos sobre a Guanabara. De costas para ele. Que lhe perdoa-se o ato. Seguiu em direção a rocha. Um pulo e resolveria todos os problemas de sua existência. Só não esperava de ter a humilhação de ser ainda assaltado...