terça-feira, 15 de dezembro de 2009

LEMBRANÇAS DA JUVENTUDE





DESCANSE EM PAZ MEU TENENTE

Existe muita beleza em tudo que nos cerca. Basta apenas treinar nossos olhos para reconhecê-las. Tudo está exposto em espetáculos livres. Num planar de uma gaivota, no alvorecer do sol, no crepúsculo da noite, no murmúrio do mar, no açoite de uma brisa, no riso de uma criança, no bambolear de uma morena, nas lembranças de uma juventude.

Juventude é algo que passa rápido, mas o marca eternamente. Em meu caso houve uma época que fiz parte de um trio enigmático. Tinha por volta de vinte e uns pouquinho de anos. Não mais de 25 e estava morando em Santa Catarina. Aliás, cabe-se esclarecer que fui passar um final de semana em Santa Catarina e fui ficando, ficando, ficando... Tinha acabado de trancar minha matricula na faculdade e necessitava viver.

Meus dois companheiros eram peças opostas em idade, formação e maneira de ser. Um já beirava do 35 anos, gaúcho da fronteira, era tenente do exército brasileiro, mulato de rosto com traços finos, filho que era da empregada com o patrão, mas que fora criado pelo último com total apoio de sua verdadeira esposa. O outro, dois ou três anos mais velho do que eu,  paulista de nascimento e filho de um forte banqueiro do mercado. Era mimado, extrovertido e acima de tudo rico. Muito rico. Figuras aleatórias mas companheiros nas horas duvidosas e em condições discutíveis.

Naquela época Camboriu, no litoral catarinense, era o boi. E nós, cientes do fato, praticamente nos mudamos para lá, ao alugarmos um apartamento. O tenente, era naturalmente o único a ter uma função objetiva em sua vida. Nos encontrava a noite e nos fins de semana. Hoje, no ocaso de minha existência as vezes confundo datas e situações, mas creio que foi naquela época que li que um dos meus grandes heróis literários, Gabriel Garcia marques, havia estado perto dali no Brasil e havia afirmado publicamente que “o Brasil era o maior pais do Caribe”.

Eu, que acabara de vir do Caribe, achei aquilo o máximo. Do trio, era o único que lia. O filho do banqueiro bebia e o nosso tenente seduzia, já que naquela época - e estamos falando do inicio dos anos 70 - farda ainda fazia a cabeça de muitas meninas. Vejam que tempo em que vivíamos...

Lembro-me de uma situação em que estávamos no mais badalado restaurante do balneário e na presença de algumas meninas realmente exageramos na dose. Gastamos o que podíamos e o que não devíamos. Ao chegar a conta que era, pelo menos para meus padrões excessivamente alta, o filho do banqueiro assumiu-a. Tirou do bolso o talão de cheque e o preencheu sem a menor piedade. O garçon que desconfiava, ao receber o cheque, com muita educação pediu ao filho do banqueiro que lhe cedesse a carteira de identidade. A resposta do amigo foi por assim dizer peremptória: “não se preocupe, o cheque é meu e o banco também!

Era a vida tentando imitar a arte. Ou vice versa., pois, na verdade, éramos uma pequena caterva de vagabundos. Eu tinha montado um negócio de vender limãozinho na praia, que era usual no Rio de Janeiro, mas até então inexistente nas praias catarinenses. Arrumei uma grana de respeito e comprei uma lancha. Logo descobri que a coisa mais sensata é ser amigo do dono da lancha, nunca o dono da mesma. Mas me diverti. Vivíamos mudando de praias, Camboriu, Piçarras, Cabeçudas e sempre muito bem acompanhados. Gozavamos a vida, sem se preocupar com o minuto seguinte.

Nosso tenente - como todo militar que se preze - era particularmente sensível a qualquer murmúrio que criasse a mínima dúvida sobre a sua honradez e masculinidade. O que em outras palavras queria dizer que enfiava-se em brigas com rara assiduidade e delas não saia. Eram freqüentes os incidentes. Numa delas não aceitou a voz de prisão de um policial e lhe sapecou, como resposta, um murro entre as orelhas. Moral da história, foi penalizado por seus superiores por sua alta indisciplina.

O tempo nos separou. O filho do banqueiro é hoje banqueiro, pois, seu pai não durou para sempre. Está em seu terceiro casamento – que segundo ele já está indo muito mal - gordo, careca e com úlceras. Continua sendo o dono do cheque e agora do banco, mas não é mais o mesmo. O tenente perdeu a patente quando capitão por alguma mazela que armou e verdadeiramente não tenho conhecimento. Mas dizem que foi por ter engravidado a filha de um general, mas não quis assumir a paternidade. Tornou-se professor de educação física e chegou até a assumir um dos grandes times de futebol.

Porém, desde aqueles saudosos tempos de Camburiu, nunca mais tivemos a oportunidade de nos reunir. Alguns telefonemas, espaços almoços em São Paulo ou em Curitiba, mas nunca tivemos a oportunidade de nos juntarmos, os três, como nos anos 70. Sempre adiávamos para um próximo encontro. Que na verdade nunca aconteceu. Eu passei a ser o elo de ligação entre ambos, mesmo morando fora do pais.

Nosso tenente faleceu. Ou melhor foi falecido, isto é assassinado em uma querela em Salvador, com um capoerista que sabia usar bem a sua navalha. Descobri o fato, ao procurá-lo nesta viagem. Como todo morto, imediatamente reintegrou-se a sua respeitabilidade mesmo tendo cometido toda e qualquer variedade de loucuras quando em vida. Nunca casou, teve filhos em quase todos os estados da união e processos vários sobre sua cabeça. Outrossim a morte apaga as manchas do passado e revigora somente as qualidades.

O trio se desfez, mas para mim a lembrança daqueles meses, nunca se apagará de minha mente.

Que meu tenente descanse em paz.