sábado, 27 de março de 2010

O DIÁRIO DO PANTANAL - 3 - O RIBEIRNHO



O RIBEIRINHO

Outras comunidades ribeirinhas encontrei pelo caminho traçado pelo capitão de nossa embarcação. As fotografei, uma a uma devassando sua intimidade. Expondo seus prazeres ao mesmo tempo que suas necessidades, com as lentes de minha camera. E ceio que um novo mundo surgiu a meus olhos, hoje muito viciado às grandes metrópoles e ao charme urbano.

Centenas de seres, invisíveis a quase todos nós foram por mim captados. Homens, mulheres crianças, jovens e até animais. Casebres, palafitas, barcos e roupas no varal, atestaram sua vidas, seus amores, seus desencantos e dissabores. Tudo preto no branco, embora fotografado a cores.

Uns me sorriram, outros me acenaram, alguns olharam-se com indiferença, muitos me ignoraram. Mais houveram também os que demonstraram surpresa e timidez. Eu era na verdade a paisagem. Eles a vida. Eu apenas a paisagem passageira, que em nada iria mudar suas vidas ou maneira de pensar.

Nunca gostei de tratar pessoas como cenário. Sei que a cada olhar, a cada sorriso, a cada aceno ou mesmo a cada indiferença, existe alguém que levou anos para se formar. Alguém que talvez não verei jamais, mas que será visto por milhares se as fotografias publicar. Seria justo expor vidas que não lhe pertencem, pelo simples prazer de desnudar uma outra realidade?

O ribeirinho parece estar alheio a política, a economia e mesmo aos destinos de uma nação. Se vota o faz por obrigação, pois, sabe que depois de eleito, aquele que seja, não olhará por seus interesses, pois, ninguém até aqui o fez. Porque mudaria? Dona Dilma? Sei lá quem é. Serra? Pelo menos este deve servir para cortar árvores. Esta duvida não toma a mente deles um minuto sequer. Embora as cestas famílias, aqui fartamente distribuídas, o façam lembrar que foi o cara que deu.



O ribeirinho tem uma coisa em comum: ele luta pela sobrevivência. Todo dia sai a cata de seu peixe. Como aquelas duas mulheres a beira do rio a limpar o seu Pintado. Existiriam opções para eles? Não sei. Assentá-los em outro lugar, mais produtivo? Impossível. Eles aprenderam a dominar seu mundo. São brasileiros de caras diferentes, mas de mesma constituição. Para que transformá-los em membros de movimentos sem terra? Para lhes torcer o perfil, esculpido em anos de existência? Moram onde poucos querem morar. Servem a região. São felizes consigo mesmo, acredito eu, pelo que senti em suas expressões.

Dali com sorte um sai e se transforma naquilo que rotulamos, para nossos egoístas padrões, de alguém. Ele não precisam sair e vencer fora de seu território em comunidade maior, para provarem que são alguém Eles o são. Você pode ver isto em seus olhares. Na maneira com levam a vida. Eles nascem, eles vivem, eles amam e eles morrem. Como todos nós. Porque diferenciá-los? Porque rotulá-los? Porque deixar que apenas a imagem seja captada? Porque não adotá-los? Isto é que um governo decente deveria fazer, antes de pensar em adotar o Haiti ou outro pais qualquer que lhe renda um voto a presidência da OEA.

O Brasil é grande demais. Cada dia descubro mais dele. Ou melhor, ele se deixa descobrir. Não sei hoje se  sou o afortunado por ter nascido em família de médio poder aquisitivo no Rio de Janeiro. Teria tido uma infância mais feliz que aqueles meninos que brincam a beira do rio, pegando jacaré no Arpoador? O meu Rio e o rio deles, também tem algo em comum: estão infestado de piranhas. A piranha não ataca a gente não, diz José, tímido, envergonhado, de trocar algumas palavras com aquele estranho. Só quando muito famintas e em bando. O perigo é o sangramento. Ai ela vem que nem tubarão. Gelei, pois, minha gengiva de vez em quando sangra, qunado a escovo...



Sinto-me um expedicionário português a ter contato com um mundo em que nunca pisara antes. Trocarei espelhinhos por algo que possa me interessar como souvenir? Não. Isto não farei. Olho aquele bando de meninos a cair de um cipó preso a uma árvore, cujas raízes beiram a margem. Aquela jovens que se banham no rio, barrento, para lavar seus cabelos. Vejo olhos curiosos, outros ariscos e até zombeteiros. Sinto a expressão de preocupação na senhora gorda e mais velha, que já entregou seu corpo a seu destino, sem uma preocupação, sem nenhuma vaidade. Os filhos criou, os netos há de criar. Para que pensar em outra coisa qualquer?

Analisei seus olhares, suas expressões e descobri que são gente como a gente. Alguns mais orgulhosos até do que sou. Cientes de sua nobreza. Não se vergam ao cunho daqueles que ali vem para esquecer de seu trabalho ou pelo simples prazer de conviver com seus amigos e pescar. Nós somos a paisagem. Passageira, fútil, mutável e perecível. Facilmente substituída por outra, em um outro barco na semanaseguinte. Outras câmaras, outras caras, outras curiosidades. Como são bobos estes turistas...

Eles não. São matéria viva. Donos de toda aquela paisagem, por direito e daquele chão por posse. O rio, as árvores, o céu, as rochas e tudo que nela vivem, a eles pertencem. Cabe a nós, agradece-los de nos deixar usufruir por dias de seu mundo, sem concreto e trânsito.

Quando vejo esta gente, tanta vontade me dá de ter um poder de neles pensar. Não mudá-los, não tentar melhorar a vida dos mesmos, que não conhecemos, apenas imaginamos. Eles podem estar felizes com o que tem e desfrutam. Precisaríamos chegar e apenas dar o nosso cartão deixando claro, que a qualquer necessidade estaríamos presente. Um ar condicionado numa escola de teto de zinco? Um posto de saúde equipado e de mais fácil acesso? Um financiamento para o desenvolvimento de um artesanato local. Um bolsa de estudos para aqueles que quisessem sair mundo afora? Não sei. Porém, é melhor que esmola em troca de voto. Este que assim estivesse preocupado, e para tal fora eleito, tinha que ir lá, sentar, e ouvir. Mas do que falar, que nunca na história deste pais...



O brasileiro na verdade não necessita sequer de adoção. Ele tem fibra, ele tem garra e Deus nos deu a maleabilidade, que muitos confundem erroneamente como jogo de cintura, que para mim combina mais com malandragem. O brasileiro ribeirinho tem noção de sua força em sua arte de sobreviver. Luta todo o santo dia com garra, por seus sustento. E não fracassa em sua luta, momento algum. Mata um leão a cada dia e sorri a passagem dos barcos. 

O encara de cabeça levantada e seu sorriso não é pérfido. Trás a humildade e a honestidade, daquele que sabe de seu valor. Precisa apenas ser ouvido e ajudado de uma forma digna. Repito, não com esmolas para vender o seu voto. Pois, para mim ele funciona como peixe impossível de ser pescado.