quinta-feira, 25 de março de 2010

DIÁRIO DO PANTANAL - 1 - UMA LIÇÃO DE VIDA




UMA MALA QUE SE NEGA 
A SER DESPACHADA ANTES DA HORA

Sempre que entro num avião ou da Gol ou da TAM, tenho a nítida sensação que acabei de penetrar em algo semelhante a um destes sitios de relacionamento. Você, por exemplo, para ir do Rio de Janeiro para Corumbá, tem que baldear em São Paulo e Campo Grande. Imagine o pobre coitado que tem que ir de Porto Alegre a Belém? Ele será capaz de conhecer no barato, 10 a 12 pessoas diferentes, basta ter boca e ouvidos. E boca e ouvidos são coisas que o brasileiro normalmente tem.

Pois é, e ainda com a vantagem que dentro de um avião, muitas pessoas se revelam. Falam mais do que o normal, ouvem mais do que o fazem em um dia normal, fora deles. Porque? Porque muitos não se sentem bem dentro de uma aeronave, mais ainda agora que os aviões andam abarrotados de passageiros. Mas não se trata apenas disto, a altitude e o confinamento já está provado, que inibe ou ao contrário, solta a franga que alguns tem dentro de si.

Eu me divirto olhando como as pessoas interagem ao medo, ao cansaço ou até mesmo a monotonia de um vôo. Uns lêem, outros dormem, tem os que rezam e os que emudecem pálidos em suas poltronas. Todavia, existem a maior gama: a que tenta conversa com seu visinho de poltrona. Aceito que a interação social é imprescindível a sobrevivência, principalmente para um ou outro que se sente enlatado dentro de um avião. Outrossim existem papos que extrapolam as raias da razão. Outros altamente instrutivos.

A fatuidade intrínseca de alguns, diálogos, cria em muitas oportunidades, verdadeiros halos de inexpressividade, ou quem sabe de inexplicabilidade que deixam o queixo caído a aquele que observa, de uma forma mais critica, como normalmente faço, em situações como estas. Confesso que adoro me fixar em uma situação e analisá-la, imaginando que são e o que fazem os interlocutores. Por isso acho o avião, depois do jornal, a maior fonte de inspiração para aquele que quiser escrever crônicas e romances do dia a dia.

E quando o avião balança? Aliás nem é preciso, basta o comandante com aquela impostação de voz de Cid Moreira dos ares, anunciar que irão passar por áreas sujeitas a turbulências e que os cintos se mantenham afivelados, que a turma se agita. Até os descontraídos que mantinham um diálogo normal, emudecem, como que sua palavras estivessem, de alguma forma, desequilibrando a harmonia do vôo.

E eu estava naquele “mood” especial de que o caísse na rede era peixe, afinal estava indo para uma semana de pescaria no pantanal de Mato Grosso. Logo, mantive minha audição em sistema de rastreamento. Não precisei muito tempo, para captar algo interessante.



No trecho de São Paulo a Campo Grande tomei conhecimento de uma conversação levada a  efeito às minhas costas, entre uma jovem de seus 18 anos e de um senhor de maior idade. Possivelmente entre os 70 e 80. Não saberia dizer para que lado desta faixa etária, ele tenderia. Pela voz ela me parecia uma universitária e ele um velho mascate. Que daria para ser avô, ou bisavô da moça.

Embora o envelhecimento em minha opinião deva ser apenas uma coisa de aspecto exterior, que pode ser minimizado, ou melhor dito, adiado pelo controle constante na  alimentação e assiduidade para com os exercícios físicos e mentais, vejo como pior envelhecimento, o interno. Aquele que faz a pessoa se sentir velha, as vezes até inútil e com certeza alienada de uma vida, vivida a sua volta.

Aceito, embora não concorde, que poucos são aqueles que gostam de conversar com uma pessoa idosa. Eu particularmente não, adoro o contato, afinal já passei também o cabo da boa esperança. Desde jovem, sempre vi o idoso, como uma enciclopédia de vida. Alguém que pode lhe dar uma visão experiente de coisas acontecidas e uma opção harmônica do que poderá acontecer. Um minimizador de erros futuros.

O diálogo chegou a um ponto que me interessou quando a menina perguntou ao senhor, como era chegar a aquela idade com tal jovialidade. O exemplo que ele deu, me calou sobremaneira.

Ele disse que quando se chega a aquela idade, você se sente como um balão de gás, que a tudo observa mas a uma certa distância. E cujo gás está acabando. Que em casos como estes, o balão continua a subir, mas sem a leveza anterior e sem mais a certeza de se chegar a seu destino. E em sendo sabedor que não se pode mantê-lo em equilíbrio e numa rota amena, a melhor saída seria se abrigar em amigos, pois qualquer forma de afastamento, o fará dele apenas um expectador de sua própria decrepitude.

Achei a definição lógica e sana. O que para muitos pode parecer triste, o é, porém igualmente real. Todavia, pronunciada por alguém que certamente ainda não envelheceu por dentro. Apenas por fora e que acima de tudo tem a noção que não pode ser um peso na vida de quem quer que seja, mas longe de aceitar ser uma mala, encostada a uma parede, pronta para ser remetida, quando a hora é chegada.



O vi descer, caminhar para o terminal de forma rítmica e perder sua companheira de vôo que jovialmente distanciou-se dele. Duas vidas que por menos de duas horas se mantiveram unidas, pelo sorteio da vida, mas que agora se separavam, para sempre. Diminuí meu ímpeto de fugir ao sol causticante, pois tinha curiosidade de ver melhor aquele senhor. O vi tomar propriedade de sua mala e seguir seu caminho. Olhei sua mala. Mala que devia tê-lo acompanhado em muitas de suas viagens. Tinha muito dele em aspecto e constituição. Estava puída mas conservava altivez. Segui-o com os olhos até que ele desapareceu na multidão. Voltou a ser uma lembrança, uma marca em minha existência, daquelas que você dificilmente voltará a ver, mas que estará para todo o sempre em algum cantinho de minha memória a lembrar-me que quando sentir o escape de meu gás, tenho que sentar as amarras de meu balão em braços amigos, pois minha mala só será despachada no minuto final de minha derradeira viagem.